segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Entrevista a Raoul Vaneigem

20 11 2009

▴ Chris Marker’s Gay-Lussac (Paris, May 1968)
Image courtesy Peter Blum, New York.

Excertos da entrevista de Hans Ulrich Obrist a Raoul Vaneigem em Agosto deste ano para a revista e-flux.

Hans Ulrich Obrist: Acabei de visitar Edouard Glissant [escritor, poeta, romancista, teatrólogo e ensaísta francês] e Patrick Chamoiseau [escritor francês], que escreveram um apelo a Barack Obama. Qual seria o teu apelo ou conselho a Obama?

Raoul Vaneigem: Recuso-me a cultivar qualquer tipo de relação com pessoas de poder. Concordo com os Zapatistas de Chiapas que não querem ter nada a ver nem com o Estado nem com os seus chefes, as máfias multinacionais. Eu proponho a desobediência civil de forma que as comunidades locais possam formar, coordenar e começar a auto-produzir poder natural, uma forma de cultivo mais natural e serviços públicos finalmente libertos dos esquemas do governo quer seja de direita ou de esquerda. Por outro lado, dou as boas-vindas ao apelo de Chamoiseau, Glissant e os seus amigos para a criação de uma existência em que a poesia de uma vida redescoberta coloque um fim ao estrangulamento mortal da mercadoria.

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Hans Ulrich Obrist: A Internacional Situacionista definiu o situacionista como alguém que se compromete a construir situações. Que eram essas situações para ti, concretamente? Como definirias o projecto situacionista em 2009?

Raoul Vaneigem: Pelo seu próprio estilo de vida e de pensamento, o nosso grupo estava já a esboçar uma situação, como um primeiro desembarque em pleno território inimigo. A metáfora militar é questionável, mas transmite a nossa vontade em libertar a vida diária do controlo e estrangulamento de uma economia baseada na exploração lucrativa do homem. Nós formamos um grupo-em-risco que estava consciente da hostilidade do mundo dominante, da necessidade de ruptura radical, e do perigo de ceder à paranóia típica das mentes sob cerco. Mostrando os seus limites e as suas fraquezas, a experiência situacionista também pode ser vista como uma meditação crítica sobre o novo tipo de sociedade esboçada pela Comuna de Paris, o movimento Makhnovista e a República de Conselhos dizimada por Lenine e por Trotsky, pelas comunidades libertárias em Espanha mais tarde esmagadas pelo Partido Comunista. O projecto situacionista não é acerca do que acontece assim que a sociedade de consumo é rejeitada e uma sociedade humana genuína emerge. Ao invés, ele esclarece agora como a vida pode suplantar a sobrevivência, o comportamento predatório, o poder, o comércio e o reflexo-de-morte.

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Hans Ulrich Obrist: Escreveste muito sobre a vida, não sobre a sobrevivência. Qual é a diferença?

Raoul Vaneigem: Sobrevivência é vida orçamentada. O sistema de exploração da natureza e do homem, a partir do Neolítico Médio com a agricultura intensiva, causou uma involução em que a criatividade – uma qualidade específica dos seres humanos – foi suplantada pelo trabalho, pela produção de um poder avarento. A vida criativa, como se começou a desenvolver durante o Paleolítico, declinou e deu lugar a uma luta brutal pela subsistência. A partir de então, a predação, que define o comportamento animal, tornou-se o gerador de todos os mecanismos econômicos.

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Hans Ulrich Obrist: No seu livro «Making Globalization Work», Joseph Stiglitz defende uma reorganização da globalização no sentido de trazer maior justiça, a fim de diminuir os desequilíbrios mundiais. O que achas da globalização? Como é que nos podemos livrar do lucro como motivação e em vez disso procurar o bem-estar? Como é que nos livramos do imperativo do crescimento?

Raoul Vaneigem: A moralização do lucro é uma ilusão e uma fraude. Tem de haver uma ruptura definitiva com um sistema económico que tem sistematicamente propagado a ruína e a destruição ao mesmo tempo que pretende, por entre a miséria generalizada, produzir um hipotético bem-estar. As relações humanas devem substituir e terminar com as relações comerciais. A desobediência civil significa desrespeitar as decisões de um governo que defrauda os seus cidadãos para apoiar o desfalque do capitalismo financeiro. Para quê pagar impostos ao estado-banqueiro, impostos usados em vão para tentar tapar o ralo da corrupção, quando pelo contrário podemos direccioná-los para a auto-gestão de redes de energia livre em cada comunidade local? A democracia directa de conselhos auto-geridos tem todo o direito de ignorar os decretos da democracia parlamentar corrupta. A desobediência civil a um Estado que nos está a saquear é um direito. Cabe-nos aproveitar esta mudança histórica para criar comunidades onde o desejo pela vida supere a tirania do dinheiro e do poder. Não precisamos de nos preocupar nem com a dívida pública, que encobre uma enorme fraude no interesse público, nem com o artifício do lucro a que eles chamam de “crescimento.” De agora em diante, o objetivo das comunidades locais deve ser o de produzir para si próprias e para si próprias todos os bens de valor social, atendendo às necessidades de todos – necessidades autênticas, isto é, não as necessidades pré-fabricados pela propaganda consumista.

Hans Ulrich Obrist: Edouard Glissant distingue entre globalidade e globalização. A globalização elimina as diferenças e homogeneíza, enquanto globalidade é um diálogo global que produz diferenças. O que achas da sua noção de globalidade?

Raoul Vaneigem: Para mim, deve significar agir localmente e globalmente através de uma federação de comunidades em que a nossa democracia parlamentar desviadora de fundos e corrupta é tornada obsoleta pela democracia direta. Conselhos locais serão criados para tomar medidas que favoreçam o meio ambiente e a vida quotidiana de todos. Os situacionistas chamaram a isto “criar situações que excluam qualquer retrocesso.”

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Hans Ulrich Obrist: No seu livro «Utopistics», Immanuel Wallerstein afirma que o nosso sistema mundial está a passar por uma crise estrutural. Ele prevê que serão necessários mais vinte a cinquenta anos para um sistema mais democrático e igualitário substituir este. Ele acredita que o futuro pertence a instituições «desmercantilizadas» e livres de custo (segundo o modelo, digamos, das bibliotecas públicas). Portanto, devemos opor-nos à mercantilização da água e do ar. Qual é a tua opinião?

Raoul Vaneigem: Não sei quanto tempo levará a transformação actual (esperemos que não muito, pois gostaria de a presenciar). Mas não tenho dúvidas que esta nova aliança com as forças da vida e da natureza disseminará igualdade e gratuidade. Devemos ultrapassar a nossa indignação natural pela apropriação lucrativa da nossa água, ar, solo, meio ambiente, plantas e animais. Devemos criar colectivos capazes de gerir os recursos naturais em benefício dos interesses humanos, não dos interesses do mercado. Este processo de reapropriação que eu prevejo tem um nome: auto-gestão, uma experiência tentada muitas vezes em contextos históricos hostis. Neste altura, dada a implosão da sociedade de consumo, parece ser a única solução tanto do ponto de vista individual como social.

[...]

Hans Ulrich Obrist: Poderias falar sobre o princípio da gratuitidade (estou extremamente interessado nisso; como curador de museu sempre acreditei que os museus devem ser livres – Arte para Todos, como Gilbert e George o colocam).

Raoul Vaneigem: Gratuitidade é a única arma capaz de despedaçar a poderosa máquina de auto-destruição posta em movimento pela sociedade de consumo, cuja implosão está ainda a libertar, como um gás mortal, mentalidade de sovina, cupidez, ganho financeiro, lucro e predação. Museus e cultura devem ser livres, concerteza, mas também o deviam ser os serviços públicos, actualmente presos aos esquemas das multinacionais e estados. Comboios gratuitos, autocarros, metros, cuidados de saúde, escolas livres, água livre, ar, electricidade, energia livre, tudo através de redes alternativas a serem criadas. À medida que a gratuitidade se espalha, novas redes de solidariedade erradicam o estrangulamento da mercadoria. Isto porque a vida é uma dádiva gratuita, uma criação contínua que a vil especulação do mercado nos priva.

#mescalero

Fonte: http://libertario08.wordpress.com

Um comentário:

  1. Massa, não sei porque mas me deu um ar de esperança na fala dele. Mas sei lá, não entendi muito bem como ele descreve que será essa criação de comunidades de auto-gestão.
    Muito bom

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A pseudo-comunicação é fácil demais.