sábado, 14 de maio de 2011

Relembrar não é viver

Um prelúdio e um retorno. Já dizia um velho camarada: nada possui tanto valor que não deva ser recomeçado, nada possui tanta riqueza que não precise ser enriquecido. Vamos ver se adianta.

Uma Vida Não é Suficiente Para Desaprender
Por Face Inoculta

Fingir. Como em cada começo do ano. Como se esse ano não fosse ser a mesma repetição do ano anterior. Como se tudo fosse se passar melhor: eu vou estudar mais, os professores serão menos idiotas, minha vida terá um pouco mais de sentido.
Minha vida, como se ela me pertencesse. E o futuro que o esperamos. E, depois, há aquele sentimento estranho: mas o que é que eu estou fazendo aqui?
Ah, eu não sei direito. Disseram-me que eu deveria ir à escola, um dia, e desde então eu vou todos os dias. Logo, virou normal. E a questão continua sem resposta... a única coisa clara, em todo caso, é fazer aquilo que esperam de mim. E nesses momentos de fraqueza, de desespero, nesses momentos nos quais eu não posso mais, o único refúgio que me resta é não mais pensar e obedecer. Fazer o que minha agenda manda, e isso pode fazer bem. Um bem assombrosamente vazio, um conforto incrivelmente oco, uma felicidade infinitamente triste, nos quais, lá dentro, eu me detesto. Eu me detesto ao ver os outros, os adultos, tão satisfeitos e seguros de me verem abandonado a suas esperas. Eu me detesto ao ver os outros, meu amigos, preferirem-me quando eu me adapto aos seus olhares. Eu me detesto ao não conseguir fazer com que eles gostem da minha imagem, e eu me detesto ao gostar de mim quando eu consigo. Eu me detesto ao voltar sempre a isso aqui, quando eu gostaria de estar em outro lugar.
Na verdade, eu me detesto ao me ver viver, e de ter consciência. Eu tenho essa impressão estranha que tudo que eu poderia viver já passou. Em outro lugar. Na televisão por exemplo. Que a escola, a vida inteira, é um clipe da MTV onde eu estou sempre procurando saber como aparecer bem, tentando encontrar o melhor ângulo pras câmeras, pros espelhos, olhando-me atuar na minha própria vida.
Fingir. Como em cada começo do ano. Fazer como se... Eu não posso mais. Aflição por não saber porque eu choro, aflição por não conseguir gritar, aflição por não estar nunca aflito. Nós estamos mortos num mundo que nem nascemos, mortos por não poder habitar um mundo que é só concreto e vitrines, mortos por sermos apenas imagens. Eu não serei mais uma vitrine: eu me quebro para começar a viver. Isso é o início. Se você quebra a sua, NÓS poderemos quebrar outras. Tirar o clipe da MTV de nossas vidas destruindo seu cenário. Desertar, é tornar deserto um lugar que esperam que cheguemos, nossos professores, nossos pais, a polícia, nossos namorados, e antes de tudo, nós mesmos. A dois nós seríamos fortes, e NÓS somos mais que dois. NÓS somos mais numerosos a cada dia, e o concreto, reflexo da nossa miséria, treme para desaparecer. Existem encontros a serem feitos, amizades para se encontrar. Nós temos quase todos um grupo de amigos com quem passamos o tempo, fumamos um, vamos à praia, vemos um filme, saímos a noite... Um grupo para dividir tristes paixões. Um grupo que nos assegura, que nos deixa sozinhos juntos, que nos diverte. Eu estou perdido para me encontrar, aqui onde o que procuramos está em outro lugar.
Na escola eu me sinto como um rato na gaiola. Uma gaiola com suas regras, seus hábitos, suas punições. Seus códigos, seus comportamentos, suas atitudes que sem parar nos contêm. Ou quase. Eu sinto as vezes como faíscas, faíscas de luz no escurecer do nosso cotidiano. Uma solidariedade no roubo, na conspiração, no silêncio que segue uma incitação à denúncia. Que toda a classe se une pra resistir de qualquer forma a um professor quando ele é autoritário, e uma nova felicidade se instala entre nós. Uma exaltação. Falamos sobre isso o dia todo, durante semanas! Se só isso pudesse ser sempre assim... mas é difícil. É difícil prolongar esses momentos de resistência face aos professores que nos ameaçam, que nos reprovam. Tínhamos feito o certo. É difícil porque mesmo nos momentos intensos, nós somos sempre pegos pela nossa solidão para nos assombrar desde que isso acabe.
Quando um professor nos ameaça de não dar aula até que seja denunciado o responsável por alguma infração, é extremamente engraçado ver que ele não pode fazer nada desde que não digamos nada, que ele fica completamente perdido quando continuamos calados. Infelizmente, quase sempre tem um que solta, que colabora. Nós aprendemos. Quase sempre os mesmos, mas as vezes temos surpresas, traições. Isso não pode nunca acontecer. Não mais traidores! Nós deveríamos lhes dar o que merecem, socos no estômago. A fim de que eles aprendam que não são mais do que um professor, ou mesmo um policial. Que eles compreendessem que é por conta de gente como eles que vivemos numa “sociedade de merda”, na qual ninguém liga pros outros se cada um tiver seu dinheiro, sua casa, seu carro zero.
Dizem-me frequentemente que se eu não estou contente eu posso mudar eu mesmo. Porque “minha liberdade começa onde acaba a liberdade do outro”, eu não devo querer mudar nada mais. Eu tentei e isso não funciona. Eu acabei percebendo por que: eliminar a parte de si que detestamos é também destruir tudo aquilo que a alimenta. O mundo da mentira. A ilusão de liberdade. Eu prefiro pensar que minha liberdade começa onde começa a dos outros, e que esse estúpido provérbio só existe para nos lembrar de não “mexer” com ninguém, de “respeitar” o indivíduo, que assim tudo continua no seu lugar.
Não nos incomodemos.
Aqui me volta a cabeça Maio de 68, que eles já tentaram, que nós não podemos mudar mais nada. Que foi só um episódio legal. Mas eu elaborei minha própria ideia; Maio de 68 são milhares de pedras voando contra a polícia, milhares de vitrines quebradas, de barricadas, de carros queimando, de usinas pegando fogo, de amor, a felicidade da revolta. A felicidade de destruir isso que nos apodrece a vida, de se amar mais intensamente e criar espaço a outros mundos. E depois, percebo que nosso curso da história negligenciou um fato essencial: Maios de 68, houve milhares.
Então querem que eu me cuide, porque sou EU que não vou bem, porque os gritos levam ao prisão e as pedras à prisão. Querem que façamos como se fôssemos nós a causa da doença, como se não estivéssemos cercados de desolação. A psiquiatria, toda forma de espiritualidade individual, de organização de caridade, as ONG's, o NPA* e o comércio solidário estão aqui para nos vender a boa consciência, para nos vender a esperança de uma reconciliação. Eu não cairei mais na armadilha desta falácia, onde cada nova imagem da felicidade é a confissão da mentira da imagem anterior.
Eu me sinto mal ao ver meus pais quererem meu bem repetindo só o que esse mundo quer para ele mesmo. É agora que estou triste, e desde sempre, mas eles continuam a falar de uma felicidade que está a vir, a me dizer que encontrarei meu caminho aqui onde tudo parece estar fechado, que foi só um passo mal dado. “Vai dar tudo certo.” Mas parece que o passo mal dado não passa, e que o futuro que eles me falam sempre estará a vir. Se estamos na escola nos falam sem parar de universidade; na universidade nos falam sobre trabalho; no trabalho nos falam da aposentadoria, e depois da aposentadoria preparamos uma morte tranquila que começou desde a escola. Nos ensinam a viver o futuro simples. “O ano que vem você será...”, “daqui a pouco eu serei...” Nossos pais, tristes crianças de suas épocas, não sabem, a maioria, que nos ensinam a sobreviver da melhor maneira que seja. A sobreviver de uma melhor maneira que eles fizeram. Minimizar ao melhor as olheiras, o álcool, os antidepressivos. Ganhar suficientemente dinheiro, ter um bom status, reiterando ao mesmo tempo cinicamente que “o dinheiro não faz a felicidade”. A felicidade, está a nós para descobrimos, na nossa vida dita “privada”, nessa preocupação paliativa que é a construção de si mesmo.
Olhe nossos pais; eles são felizes? Eles são verdadeiramente felizes? Eles não parecem mais carregar um peso – visível nas olheiras – de ter sacrificado a vida a uma certa ordem das coisas? Os venderam essa mesma mentira que querem nos vender hoje com muito mais histeria, histeria que só faz desmascarar essa ilusão:
“Sua vida consistirá em engessar um muro que está desmoronando, mas como se você não soubesse.”
E nós replicamos:
“Nós não queremos suas olheiras, nem mais o seu gesso e suas mentiras. Não, nós não queremos parecer verdadeiramente felizes. Nós largamos nossos trilhos. Nós temos a intuição de que isso que esconde esse muro que já cai em migalhas, acabará em cinzas. Um amigo disse que a característica destrutiva demole o que existe não por amor as ruínas, mas pelo amor dos caminhos que as atravessam.
Nós acreditamos, e nossa força cresce a cada dia.”

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