Prelúdio
Escrevi um texto, assim meio espontâneo.
I.
O comunismo foi historicamente confundido com as sociedades de capitalismo de Estado do leste europeu e adjacências. Tais formações foram interpretadas tanto por liberais quanto por esquerdistas, como sendo o auge do marxismo e teriam a ver, segundo a mesma interpretação, com a realização prática da teoria marxista. O significado do comunismo acabou sendo absorvido por tais regimes, que se arrogavam a cada dia de sua existência como sendo a única e possível realidade do socialismo.
II.
O objetivo deste artigo não é fortalecer o cinismo dos capachos do capitalismo globalizado; trata-se, antes, de reverter esta confusão e de esclarecer de uma vez por todas a natureza e o conteúdo do comunismo.
III.
As formações do “socialismo real” nada tinham a ver com o comunismo. Na verdade, se aproximavam mais de um capitalismo de Estado do que de qualquer outra coisa. Primeiro, pelo fato que o comunismo pressupõe a não-existência do Estado, ao passo que tais sociedades eram centradas na figura do Estado. Segundo, porque o comunismo não é um capitalismo “melhorado”, onde os operários se apropriam da “mais-valia” que produzem para proveito próprio; o comunismo não é a socialização do capital com uma posterior generalização do status de trabalhador, mas a extinção do capital e do trabalho.
V.
Devíamos nos perguntar, em primeiro lugar: o que define o capitalismo? Afinal de contas, o capitalismo não se define apenas pela oposição entre “proletariado” e “burguesia”, tampouco pela “propriedade privada dos meios de produção”. Na verdade, este se diferencia mais pelo fato de que os meios de produção não são acionados tendo em vista a satisfação de necessidades, mas o lucro em dinheiro, a valorização do capital.
O capital não é o instrumento de produção por si só, menos ainda o trabalho acumulado. Do contrário, poderíamos definir as formigas como sendo capitalistas. O capital é, antes de tudo, uma relação de produção. O que significa isso? Significa que por meio do processo de “metabolismo do homem com a natureza”, as pessoas estabelecem determinadas relações entre si ou formas de se relacionarem mutuamente por mediação das forças produtivas. Mas o capital não é um princípio restrito à “economia”; antes, trata-se de todo um modo de produção e de reprodução da sociedade, de uma relação social total, que diz respeito a todo o conjunto das relações sociais humanas. Assim, o capital é uma relação social que, como resultado, gera a submissão do trabalho vivo ao trabalho morto, do fazer ao feito, do fazer vivo ao fazer objetivado. Trata-se da subordinação do agir humano em geral a um fim estrangeiro, que é estranho ao ator: o fim em si mesmo da acumulação capitalista.
V.
Quando o capital domina no seio da atividade produtiva, surge uma outra esfera, aparentemente oposta, denominada “circulação”. É por onde circulam as mercadorias, pelo viés de onde se realiza o valor ou o mais-valor (“mais-valia”) disposto no ato produtivo. Sobretudo, é o espaço onde as relações sociais entre as pessoas tomam a aparência fetichista de uma relação social entre coisas (entre o meu dinheiro e a sua mercadoria e vice-versa). As relações entre as pessoas e suas atividades ficam condicionadas a ser um mero meio de realizar o “trabalho morto” representado nas mercadorias.
VI.
Partindo de tal análise fundamentalmente crítica da natureza do capital, poderíamos definir o comunismo como sendo a supressão das relações mercantis e da produção de mercadorias, para que o controle dos homens sobre o sentido e o produto de suas atividades seja enfim realizado.
VII.
O comunismo não tem nada a ver com o estabelecimento da “igualdade” entre os indivíduos. Não faz parte de nossos sonhos um tal mundo onde todos comam da mesma comida, compartilhem das mesmas vestes e durmam em lares idênticos. Tais fantasias são a antítese do comunismo!
Menos ainda queremos uma sociedade onde todos ganhem o mesmo salário, sem distinção. O comunismo não é igualdade de salários! Isto seria equivalente à generalização da privação. Antes, o comunismo exige que os indivíduos possam exercer suas diferenças e desenvolver livremente suas potencialidades físicas e intelectuais. No capitalismo, ao contrário, todas as pessoas foram embutidas numa mesma fôrma, independente de seu conteúdo em particular. Em referência ao mercado de trabalho, são todas “mão de obra”, mercadoria força de trabalho; em referência ao Estado, todos contam como sujeitos-voto.
VIII.
As sociedades do leste europeu, bem como Cuba e outros países ditos “socialistas”, não passavam de sociedades de “mercado planificado”. De fato, de acordo com a abordagem de Kurz em “O Colapso da Modernização”, poder-se-ia dizer que os bolcheviques não suprimiram o capitalismo em Rússia, apenas o fizeram introduzir tardiamente. Uma “modernização retardatária” nos moldes do absolutismo.
IX.
Por fim, seria importante ressaltar o caráter dialético da concepção de “comunismo” em Marx. Em “A Ideologia Alemã”, Marx diz em termos claros que:
“Para nós, o comunismo não é um estado que deva ser implantado, nem um ideal a que a realidade deva obedecer. Chamamos comunismo ao movimento real que suprime com o atual estado de coisas”;
Quer-se, desta forma, focar o comunismo não enquanto um “ideal” distante, mas como um elemento presente na própria realidade do capitalismo, como um elo vivo entre o presente e o futuro. O capitalismo não “é”, simplesmente; ele é e existe em constante tensão com aquilo que ele não é. As formas burguesas das relações sociais não estão pronta e devidamente acabadas. Elas não foram estabelecidas num passado longínquo, mas estão sendo estabelecidas, quebradas e re-estabelecidas a todo tempo. Como explica Holloway, as formas burguesas são formações, processos de formação das relações sociais. A forma-Estado, a forma-mercadoria, a forma-capital e assim por diante, são formas maleáveis. Felizmente, não existe um capitalismo “puro” e “total”. No próprio cotidiano das “pessoas comuns”, a crítica do valor se engendra enquanto expressão de uma desarmônica relação entre as necessidades humanas e a economia. À tendência de “ressolidarização” e de reconstituição da comunidade, denominamos comunismo.
X.
O comunismo é o movimento que age no sentido de suprimir a sujeição do presente ao passado, do trabalho vivo ao trabalho morto, e nesse desenrolar de coisas, tende a extinguir a oposição de classes no seio da sociedade.
Uma vez suprimida a propriedade privada, a oposição entre o “público” e o “privado” e a cisão entre o interesse geral e o interesse particular desaparece. O Estado desmorona como expressão dessa cisão, não para que seja suplantado por uma “democracia direta”, pois a democracia pressupõe a cisão de interesses. Ademais, no comunismo não há uma esfera separada denominada “política” em oposição à uma esfera “econômica”. A vida social opera por meio de um conjunto de relações sociais que não se excluem mutuamente. Enfim, deslumbra-se a comunidade humana.
- FIM -
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